Não fossem os golfinhos e o Sado tinha tudo para ser perfeito. Do comboio da Fertagus à beira rio, tropecei em Setúbal demasiadas vezes sem tropeçar em ti. Mas sabia que aquele muro junto à água ainda havia de ser um bom palco para discorrermos sobre a dramaturgia do nosso encontro com o universo. Nesse dia não houve choco frito, nem barco para Tróia, nem Arrábida de fundo - nada do que me fazia apaixonar pela cidade. Um sumo do Pingo Doce e a promessa de que o prazer deve ser económico delinearam as frases do dia. Não havia planos, só havia dúvidas. E dívidas de amor que tardavam em saldar connosco. No fundo, era só aquilo: quatro mãos cheias de histórias paralelas que acabaram por dormir em quartos colados. E o orgulho de saber que faço parte dos teus dias quando dizes: "Vou exportar malmequeres".
quarta-feira, 16 de novembro de 2011
domingo, 2 de outubro de 2011
Terceiro
Dizem que à terceira é de vez. Parece que sim. Este foi o terceiro blog que tive e o único que sobreviveu tanto tempo. Em três anos, sobreviveu aos meus amores e desamores, às mudanças de casa e de vida e às sucessiva faltas de vontade. Não ter vontade de ler, não ter vontade de escrever, não ter vontade de sentir. Coração ao alto e intelecto também. Às vezes, a única vontade que aqui mora é a de adormecer. E acordar dormente para sobreviver às batalhas que todo e qualquer dia seguinte prepara. Três anos, e dezenas de trincheiras, depois aqui está ele - um depósito de resquícios de existência que os meus dias não conseguiram absorver.
Estás crescido, os meus parabéns.
quinta-feira, 25 de agosto de 2011
#2
Gosto de pensar que o nosso amor é uma canção do Victor Espadinha. Afinal, foi em Setembro que te conheci. Palmela ainda transpirava os últimos bafos de Verão e a Península de Setúbal teimava em encerrar o Estio com festas que lembram sempre o Ribatejo. Tudo imaculadamente regado a álcool, como manda a tradição. Garrafas ao alto! Copos não, que isso é para meninos. E eu e tu, ali no meio da vila, parados em 1978, onde a bebedeira permitiu que nos encontrássemos. Que aqueles cinco versos podem muito bem ser um hino dos tempos modernos.
"Foi em Setembro que te conheci
Trazias nos olhos a luz de Maio
Nas mãos o calor de Agosto
E um sorriso
Um sorriso tão grande que não cabia no tempo"
Podia dizer que já não se fazem canções assim e provavelmente seria verdade. Os poemas de amor, mesmo aqueles cujos versos se desenham em prosa, já não vêm encharcados em lágrimas e promessas de eternidade. Longe vão os tempos em que as gavetas se enchiam de folhas esgravatadas com devaneios literários proporcionados por corações destroçados. Ou enamorados. Parece que já ninguém gosta de finais felizes. (Se bem que um final feliz é uma espécie de "não-final" e talvez por isso hoje em dia ninguém goste dele.) O que hoje sobrevive é a narrativa aberta, aquela em que não se sabe bem como é que a história acabou. Os novelos da tecnologia e a violência do imediato não nos deixam terminar nada. Quanto muito, terminam eles sozinhos: mudar de e-mail, mudar de número, perder o telemóvel. Daí que quando, por entre bits e bytes, se descobrem dedicatórias intermináveis, escritas com uma esferográfica de qualidade duvidosa, pedidos de desculpa e de namoro, o melhor mesmo é aproveitar. Como se aproveitam as canções de antigamente: num formato físico qualquer.
Agulha no vinil: o nosso amor é um gira-discos. Um gira-discos a tocar um single do Victor Espadinha.
"Foi em Setembro que te conheci
Trazias nos olhos a luz de Maio
Nas mãos o calor de Agosto
E um sorriso
Um sorriso tão grande que não cabia no tempo"
Podia dizer que já não se fazem canções assim e provavelmente seria verdade. Os poemas de amor, mesmo aqueles cujos versos se desenham em prosa, já não vêm encharcados em lágrimas e promessas de eternidade. Longe vão os tempos em que as gavetas se enchiam de folhas esgravatadas com devaneios literários proporcionados por corações destroçados. Ou enamorados. Parece que já ninguém gosta de finais felizes. (Se bem que um final feliz é uma espécie de "não-final" e talvez por isso hoje em dia ninguém goste dele.) O que hoje sobrevive é a narrativa aberta, aquela em que não se sabe bem como é que a história acabou. Os novelos da tecnologia e a violência do imediato não nos deixam terminar nada. Quanto muito, terminam eles sozinhos: mudar de e-mail, mudar de número, perder o telemóvel. Daí que quando, por entre bits e bytes, se descobrem dedicatórias intermináveis, escritas com uma esferográfica de qualidade duvidosa, pedidos de desculpa e de namoro, o melhor mesmo é aproveitar. Como se aproveitam as canções de antigamente: num formato físico qualquer.
Agulha no vinil: o nosso amor é um gira-discos. Um gira-discos a tocar um single do Victor Espadinha.
domingo, 19 de junho de 2011
segunda-feira, 30 de maio de 2011
Proibido
Um dia chegamos à conclusão que toda a gente morre. Normalmente, os mais velhos morrem primeiro, mas, como em tudo na vida, há excepções. Primeiro morrem os avós. Depois os pais. Por último, os filhos. Todos morrem. Eu, tu, ele e os restantes pronomes pessoais. Um dia acordamos e apercebemo-nos que alguém à nossa volta deixou de existir. Ou pode deixar de existir. E aí, não interessam as saudades. Não interessa o que se fez, o que se disse o que se pensou. Interessa apenas e só o contrário. Interessam as vezes que errámos e não quisemos fazer melhor, as vezes em que tropeçámos na realidade e fomos de boca ao chão, interessa que caímos e não nos conseguimos levantar.
No dia seguinte, está sempre tudo na mesma. Talvez um pouco mais de tristeza em meia dúzia de corpos, mas nada mais. O mundo não pára quando alguém se vai embora. O luto é proibido. Ouviste bem? É PROIBIDO! Não há tempo para isso. Não há tempo para chorar. As lágrimas fazem arder os olhos e isso reflecte-se na produtividade. Não. Não. Não. É preciso engolir cada milímetro de desilusão. Quando estiveres de férias, logo ficas de rastos e passas os dias em casa fechada, de estores fechados, aos berros com a vida e com as injustiças deste universo. Agora não dá. E não dá, porque a jornada ainda mal começou.
És adulta. És meia-adulta. Mas uma daquelas metades que vale por uma unidade inteira. Vai mas é dormir, que amanhã há mais.
quarta-feira, 27 de abril de 2011
Interruptor
Nunca houve sossego no que sinto por ti. Nem mesmo quando o tempo passou, porque deixámos de existir. No dia em que apareceste, o céu deixou de estar tão longe e tudo passou a ser mera loucura. Mas a filosofia habitava os teus recantos, feita ciência exacta do que é ser humano. As tuas divindades familiares escorregavam, empurradas, para dentro do que se queria por "nós". E nunca houve senão a ilusão de um plural em que existíamos os dois. A música continuava a tocar, meio gasta, quase afónica, à espera que viesses carregar no botão. Desliga isto, por favor. Desliga, que eu já não te aguento mais.
terça-feira, 15 de março de 2011
sábado, 12 de março de 2011
Mixtape Do Amor Que Não Chegou
Embrulhou o cd no casaco por causa da chuva. Mas o problema nem era a música, era a colecção de letras de canções que tinha empacotado para lhe dar. Eram as canções do amor que não tinha chegado para mais. Escolhidas a dedo, com as partes importantes sublinhadas a marcador, para que ele não tivesse problemas a interpretar o que ouvia. No final de tudo, o amor resumia-se a isso - poesia, batida, melodia. Tudo junto, gravado em formato físico para que, ao menos, pudesse sobreviver às incompatibilidades tecnológicas que às vezes o mp3 traz.
Quando chegou ao portão dele, tocou à campainha e pousou o que trazia no chão. Tinha parado de chover, mas o chão continuava molhado, e uma prenda assim não é coisa que se queira ver encharcada. Correu para a esquina, antes que alguém da casa a visse, e ficou a espreitar lá do fundo. Quando ele abriu a porta, o seu mundo tremeu outra vez. Escondeu-se quando ele tentou ver se havia alguém na rua. Conseguiu. Ele pegou em tudo e entrou em casa. Aquilo era o testamento da relação que não tinha resultado. Mesmo depois de estar tudo morto e enterrado, a cada coisa o seu devido lugar. E o de cada um iria ser sempre especial. Por isso, não teve dúvidas de quem o tinha deixado lá. No caderno cheio de palavras por entregar e embrulhar, a primeira página dizia só: "Mixtape Do Amor Que Não Chegou". Era verdade. Pelo menos o dele não tinha chegado.
segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011
"Regressa-se quase sempre ao que se amou. Às pessoas, aos livros, aos filmes, às imagens e às músicas, e aos lugares também."
sábado, 29 de janeiro de 2011
Filmes
Há filmes que são só filmes.
Película.
Palavra.
Fotografia.
Uma imagem qualquer em movimento, que devora a sua própria escuridão. As sombras que reflectem o mundo ficam à porta do cinema. Quando têm a sorte de entrar, nunca se sentam, que as cadeiras são frágeis e não aguentam o peso que cabe na sala. Tudo é visto à lupa de uma ciência a que chamam humanidade. Vemos. Ouvimos. Sentimos. Mas o toque nunca existe senão o da luz no ecrã branco. Queria dar-te a mão, para não teres medo de alguma coisa instalada algures entre o bilhete e o balde de pipocas que seguras. Can I keep you? Um dia, vou ser a estrela de cinema que te dá um beijo de boa noite, ternurento e apaixonado, antes de adormeceres. Mas só se tu quiseres muito mesmo, que não gosto de esbanjar doçura assim.
O filme continua a ser só um filme. Nem sequer se pode gabar de ser uma reles adaptação.
É só um filme.
quinta-feira, 20 de janeiro de 2011
Fundamentalismos Cívicos
Podes não concordar com qualquer um dos candidatos, mas podes sempre marcar a tua posição. Podes votar em branco. Podes votar nulo. Mas vota. Não te esqueças que, se não votares, nem sequer tens moral para refilar no fim. A verdade é que somos nós quem os põe lá em cima. Eu, tu, os nossos pais, os nossos amigos, os nossos vizinhos. Se queres mudar o que achas que está mal ali, começa por sair de casa no domingo e vai votar. Mesmo que não votes em ninguém.
segunda-feira, 17 de janeiro de 2011
#1
O comboio estava quase vazio, como era costume àquela hora. Tão ou mais vazio que o do Barreiro. Mas ela sabia que aquele tinha duas carruagens, pelo que mesmo estando vazio, arrastava sempre o peso das gentes empacotadas da linha de Sintra. Vá lá, ao menos hoje notava-se o cheiro dos milhares de banhos matinais. É sempre bom começar a semana limpinho - a segunda-feira nunca falhava. Ao menos isso.
Quando saiu, viu que afinal o mundo muda nos intervalos dos dias em que nada acontece. A estação que estaria pronta cinco anos depois do início - ou assim prometia a placa gigante do Ministério das Obras Públicas - já estava em fase de conclusão, apesar das quatro linhas planeadas serem ainda e apenas duas. E ela não tinha mudado de casa havia sequer um ano.
75km mais tarde, a percepção de universo pararelo à Lisboa que tanto amava era diferente. Linha de Sintra, Linha de Cascais, Oeiras, Margem Sul e aquele bocado para lá de Sacavém, que quase ninguém se lembrava que existe. E ali estava ela, suburbana convicta, filha de um dormitório que nunca adormece a frequência dos 60hz (o zumzum dos carros lá ao fundo...). Salvava-se o facto de ter tido a sorte de viver num sexto andar, com vista desafogada, com direito a uma paisagem ainda verde e uma réstia de mar lá quase nos confins do horizonte.
Um dia, a densidade populacional dos prédios de dois elevadores deixou de a afogar. Mudou-se para o outro lado do Tejo, por força das circunstâncias, e a localidade rente ao IC19 deu lugar a uma vila. Mas uma vila sem o glamour do dois L's importados graças ao turista estrangeiro, nem o carimbo da UNESCO. Uma vila, no verdadeiro e desolador sentido rural da palavra, já que ter ido morar para ali tinha sido uma tragédia.
Um dia, a densidade populacional dos prédios de dois elevadores deixou de a afogar. Mudou-se para o outro lado do Tejo, por força das circunstâncias, e a localidade rente ao IC19 deu lugar a uma vila. Mas uma vila sem o glamour do dois L's importados graças ao turista estrangeiro, nem o carimbo da UNESCO. Uma vila, no verdadeiro e desolador sentido rural da palavra, já que ter ido morar para ali tinha sido uma tragédia.
segunda-feira, 3 de janeiro de 2011
Página 129
Depois do último amor, ela tinha decidido que não ia mergulhar mais em palavras que não eram as suas. Não ia voltar a dedicar excertos de textos ou letras de canções. Não ia voltar a usar frases de outras canetas ou teclas para agarrar o amor de alguém. Não. Não. E não.
Mas o Natal trouxe-lhe dois livros de poesia. Em vez de "Boas Festas", o postal do saco colorido trazia instruções claras, uma página específica. Não foi preciso procurar: já estava marcada com uma folha. Caligrafia pouco legível e uma dedicatória de tamanho A4. Afinal, ainda havia alguém que a fazia ficar de lágrima a descoberto no meio de um sorriso. Acabava sempre por resvalar tudo para a pieguice do amor. Paciência. Agora já estava. Tudo de novo. Uma vez mais. O medo, a insegurança e a vontade do para sempre. Mas ele deu-lhe o seu poeta preferido, aquele que ela nunca conseguia encontrar no meio de prateleiras e prateleiras de livrarias pela cidade fora - ele merecia o benefício da dúvida. Que no final de contas, o poema que ela mais tinha gostado nessa noite fora a prosa que ele encaixara nas quadrículas que marcavam o soneto da página 129.
"Não sei nunca se é isto exactamente
o que chamam amor - esta vontade
de imaginar assim a força que há-de
tornar-nos mais felizes de repente"
Fernando Pinto do Amaral
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