domingo, 30 de dezembro de 2012

#24

Tenho lido muita banda desenhada. O que significa que tenho lido muito. Ou, não sendo muito, tenho lido mais do que os últimos anos me têm deixado. É certo que a tecnologia ajudou, mas não fosse a derradeira força das palavras (e das imagens) e não estaria tão aconchegada esta noite. O hip-hop também tem tomado bem conta de mim. Parece que encontro de mim nos versos alheios aquilo que sei de cor mas não conheço. Ando sempre a nadar fora de pé. O sossego chega com o conforto de saber que não estou sozinha. É por isso que gosto de ler: porque aquece e arrefece o que está cá dentro, qual microondas de sensações. Quando abraçamos a língua com delicadeza, ela devolve-nos esse amor nas mesmas proporções. Na incerteza com que o mundo palpável nos brinda, salvam-nos as frases vagarosamente depuradas e as imagens feitas filosofia. Sim, as personagens dos livros são os retalhos das vidas em que tropeçámos algures. Nos quadradinhos deste álbum, os balões atafulham-se com letras manuscritas. Cada um com a sua tipografia, como se os ângulos de um símbolo definissem um pouco mais daquilo que somos. Ou do que fomos. Todos os dias, de capa ao pescoço. Heróis de narrativas que nunca vão ser deslindadas por outras pessoas. A conquistar identidades entre ser sujeito e qualquer predicado da existência.

in "Asterios Polyp" de David Mazzucchelli

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

#23

Deixou-se levar. Foi a uma daquelas lojas onde noventa desportos se arrumam em (sabe Deus quantos) metros quadrados e escolheu a tenda mais fácil de montar. Uma daquelas que se atiram ao ar e ficam prontas num instante. O plano era simples. Ir ter com ele e acampar ali, ao seu lado. Não queria invadir nada. Na verdade, a tenda serviria apenas os momentos pontuais em que quisessem estar juntos. O amor feito aparelhagem. (Play, pause, play.) Esperar pelo timing certo. O amor feito dj set. Acertar o tempo de cada disco até encaixar. (Pitch para cima, pitch para baixo.) Não que seja importante saber utilizar um crossfader para sobreviver a um acampamento. Até porque nestas histórias costuma resumir-se tudo à figura do príncipe encantado, e toda a gente sabe que a realeza não só não acampa, como (regra geral) percebe muito pouco deste tipo de geringonças. Mas ela não procurava um príncipe. Na verdade, queria ser ela a princesa. De headphones na cabeça, a escolher refrões de depuração requintada, como se as bpms acelerassem o coração em sintonia com as hormonas. Afinal, dizem que o amor é cerebral e (cientificamente) quase uma ilusão. Seria bom poder desenhar um cenário com a banda sonora perfeita. O ideal era mesmo acampar longe dali. Numa casa qualquer, onde houvesse um bom sistema de som. O amor são dois discos. Basta tocá-los à velocidade certa.

Fotografia licenciada em Creative Commons por Marco Wessel.